quarta

25, agosto 25-03:00 2007 às 7:54 pm | Publicado em histórias verídicas que realmente aconteceram | 5 Comentários

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Quarta-feira. De longe o dia de semana mais árduo no início do meu curso de psicologia. Toda quarta trabalhava de manhã e, graças ao calendário esburacado da federal (que distribuía entre as aulas o maior número de janelas possíveis), freqüentava aulas de tarde e de noite.

22h. Ao final da última aula me dirigi ao ponto final. Corpo exausto, um único pensamento: tomar um banho relaxante quentinho e dormir o merecido sono. Para amenizar o cansaço torci para que pudesse voltar ao menos sentado no ônibus. Ao contar as pessoas na fila concluí que não ia dar. Deu. E sobrou um espaço vago ao meu lado, na última fileira, no fundão.

O motorista demorava para partir. Súbito, entra uma senhora falando alto e de modo incompreensível. “Mais uma louca no ônibus”, foi meu pensamento automático. Mas, ao contrário do que imaginava, ela não disse que poderia estar matando, que poderia estar roubando. E não pediu nada. Pagou a passagem corretamente e passou a catraca. Dirigia-se, contudo, a quase todos do ônibus, falando alto e com sílabas sem sentido. Todos a ignoravam ou repeliam. Olhei fixamente para ela. Olhei para a cadeira do meu lado. Não deu outra. Sentou-se no único banco disponível e dirigiu-se a mim:

– Adassena apia sose japite?

O ônibus partiu. A esta altura, das duas, uma. Ou tentava ignorá-la durante toda a viagem (em torno de meia hora). Ou tentava aproveitar a companhia e interagir. Tentei a segunda opção.

Algumas sílabas arranjadas se repetiam. “Apia” era uma delas. Arrisquei:

– A senhora estava na terapia?

Abriu um largo sorriso e confirmou efusivamente com a cabeça. E dado o sucesso na comunicação, inundou-me com mais algumas dezenas de sílabas. Com um pouco de paciência, tempo e muita “técnica” de tentativa-e-erro descobri que minha companhia voltava, especificamente, da terapia fonoaudiológica e que havia perdido a capacidade de falar corretamente devido a um acidente fazia pouco tempo.

Justamente nesta época na faculdade estava encantado com uma nova disciplina, a neuropsicologia. E naquela mesma semana havia estudado alguns mecanismos neurais envolvidos na linguagem. Tentei organizar meus parcos conhecimentos sobre o assunto e hipotetizei (apenas para mim, obviamente) que aquela senhora podia ser um caso de afasia motora que envolve uma lesão na área de Broca: afinal sua compreensão parecia intacta, mas havia uma visível dificuldade de expressão verbal.

Como se estivesse lendo meus pensamentos, ela tirou da bolsa vários papéis com resultados de exames. Em um deles estava claríssimo: o quadro se devia a um AVC (o popular derrame) na área de Broca do hemisfério esquerdo ocorrido dois meses antes. Ah, agora era eu que abria um largo sorriso! Havia acertado meu primeiro diagnóstico neuropsicológico com base em pouquíssimas informações. (Claro, era sorte de principiante, todos os diagnósticos posteriores foram muito mais difíceis!)

Mas compreendendo sua realidade, a conversa ficou muito mais fácil:

– Já entendi. Quer dizer que a senhora entende tudo que falam, quer falar e não consegue, por mais que se esforce?

A confirmação foi mais efusiva.

– Imagino que os outros até percam a paciência com isso e achem que é outra coisa, não é?

No que ela começou a falar muito e rápido e tirou da bolsa a foto de uma jovem. Novamente com paciência, tempo e “técnica”, entendi que se tratava de sua filha. E que estava muito irritada com o quadro da mãe e chegava a ser agressiva, o que trazia muita mágoa. Quando relatei isso, escorreu uma lágrima no rosto da senhora.

A conversa continuou e a meia hora da viagem de ônibus estava chegando ao fim, meu ponto se aproximava. Despedi-me, dizendo o quando para mim tinha sido prazeroso conhecê-la. Ela segurou firme o meu braço, pediu para que não decesse. E afirmou (a esta altura a compreensão estava muito mais facilitada) que eu havia sido uma das únicas pessoas, incluindo a família, que havia a compreendido nestes dois últimos meses. Devolvi seu olhar de gratidão e, meio contrariado, desci do ônibus.

A necessidade da expressão humana? O quanto um dia não está perdido até o seu término? A importância do conhecimento no combate ao preconceito? Minha predileção pela neuropsicologia que se afirmava? A força de um encontro? Não sei bem o que aprendi nessa quarta. Sei que nunca mais esqueci.

5 Comentários »

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  1. Leandro, na filosofia existe um termo que se chama Epoché(não sei se é assim que se escreve, mas pronuncia-se epoké), que seria a suspensão de valores, isso aprendi com o prof Ivo do Bagozzi. Não devemos julgar as pessoas a priori, deve-se deixar os pré conceitos de lado para então conhecer as pessoas, seus defeitos e qualidades. Muito comovente a sua história.

  2. Já imaginou como seria vida quando deixássemos de lado os preconceitos? Sou uma vítima dos meus e por conta disto já bebi muita água (desta água não beberei…) Enfim, ganhou o dia!

  3. Nossa… que história, Leandro! Tem muita, muita beleza nela…

    faz pensar sobre muitas coisas.. inclusive sobre minhas próprias posturas em certos momentos (em especial em ônibus no final do dia… rs)

    beijos

  4. Orra meu, que relato! De fato, uma experiência efetiva ocorreu aí, não é mesmo? Duas pessoas efetivamente se abrindo uma para a outra, sem preconceitos, modismos ou codificações prévias… as regras construídas na própria relação!

    muito legal! 😉

  5. […] Na época do curso de Psicologia descobri que o evento do Matte Leão sabor limão poderia ser explicado por um desejo inconsciente do ID ou por um pareamento de estímulos ou pelo processamento paralelo das funções mentais. Ou ainda por dezenas de outras teorias. E que estas teorias não necessariamente eram complementares e, via de regra, eram também muito discordantes entre si. A dúvida era qual delas responderia melhor minhas perguntas. Mas aí já é outra história. […]


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